Unidade de Aprendizagem III

Gestão da atenção à saúde

Módulo 10 – Organização da atenção

Vejamos um pouco mais a fundo a história de Carlos...

 

Cena 9 – Tratar é cuidar?

 

O proctologista faz solicitação para o tratamento de Carlos pelo Sistema de Regulação. É feita a marcação no hospital de um município vizinho e a consulta é agendada para um mês depois.

 

No mês seguinte, Carlos estava lá no horário e dia agendados para a consulta. Ele e outras dezenas de pessoas, vindas de vários cantos do estado. Parecia, de fato, que aquele era o único lugar para tratamento do câncer no estado. Carlos é recebido pelo oncologista, que o examina e analisa os laudos de seus exames. O médico é taxativo:

 

- Seu Carlos, o senhor já está ciente de que tem um tumor maligno e que precisa tratá-lo. Para dar continuidade ao tratamento, temos que realizar uma bateria de exames para saber exatamente qual é a situação atual da sua doença e tomar nossas decisões – explica o médico.

 

Rita pergunta apreensiva:

 

- Mas onde ele fará esses exames?

 

- Aqui mesmo. Vou lhe indicar o setor de marcação de exames para que possa agendar – responde o médico.

 

Rita respira aliviada e comenta:

 

- Ainda bem. Estamos ficando sem dinheiro para as passagens. Temos ido a muitos lugares.

 

- D. Rita, vou encaminhá-la para a assistente social. Ela poderá esclarecer sobre os seus direitos, inclusive sobre transporte gratuito.

 

Carlos foi ao setor de marcação de exames e Rita foi conversar com a assistente social.

 

No setor de marcação de exames, Carlos descobre que terá que retornar várias vezes à unidade para realizar os exames, pois nem todos podem ser feitos no mesmo dia. Além disso, um dos exames teria que aguardar o conserto de um aparelho quebrado. Com isso, Carlos levou quase três meses para fazer todos os exames solicitados e obter os laudos.

 

Rita conversou com a assistente social e recebeu todas as orientações para serem incluídos na van da prefeitura, o que ajudou a reduzir parte dos gastos com o tratamento.

 

Apesar de conseguir o transporte, as idas e vindas de Carlos ainda oneravam seu orçamento e apenas faziam-no sentir-se mais e mais cansado. Um monte de questões sempre passava por sua cabeça: por que esses aparelhos estão sempre quebrados? Uma unidade não pode emprestar para a outra ou usar o equipamento da outra? Será que alguns exames mais simples não poderiam ser feitos no meu município? Ninguém pensa que tudo isso pode prejudicar ainda mais a vida das pessoas? Vai ver que é por isso que muita gente falta e aí fica tanta gente esperando pela marcação. Vai entender...

 

A essa altura, Carlos também se perguntava se poderia ir ao baile de reencontro da sua turma e quem poderia ajudar na confecção dos convites. A ideia do baile era o que mais lhe trazia prazer naquele momento.

 

Na consulta com o cirurgião do hospital para a avaliação dos resultados dos exames, Carlos recebe a confirmação de que fará quimioterapia e a radioterapia seguida por uma cirurgia, mas só é possível a marcação da quimioterapia, pois o equipamento de radioterapia do hospital está quebrado. Estão sem contrato de manutenção do aparelho.

 

É feita nova solicitação da radioterapia pelo Sistema de Regulação e após nova espera o tratamento é marcado em outro município vizinho, de uma região de saúde diferente daquela onde Carlos reside. Ele acaba sendo encaminhado para o tratamento em dois outros municípios. Rita, em princípio, não quer que o marido siga o tratamento porque acha que ele não resistirá a todo o desgaste gerado pelo transporte e pela espera, além da debilidade causada pelo próprio procedimento.

 

Após o término das sessões previstas, Carlos tem que aguardar pela cirurgia. Quando esta finalmente é realizada, ele acaba necessitando de uma colostomia e sai do hospital utilizando uma bolsa especial para que suas fezes sejam coletadas.

 

Carlos conclui, após um ano, a pior parte de seu tratamento, mas, deverá continuar fazendo consultas de acompanhamento para a detecção, o mais precocemente possível, de recidivas. Foi informado de que poderá ter o trânsito intestinal reconstituído caso não haja evidência de recidivas.

 

No próximo ano Carlos terá que ir ao hospital para as consultas e para buscar as bolsas de colostomia, rezando para que não estejam em falta na farmácia.

 

Carlos levou um grande choque após a cirurgia, ao descobrir que teria que usar a bolsa de colostomia, mesmo com a possibilidade de sua retirada. De volta para casa, não encontrava consolo. Sentia-se envergonhado, inútil. Enquanto esteve no hospital, o ritmo acelerado dos profissionais parecia não dar espaço para uma conversa sobre esses sentimentos. Carlos resumia-se a comer e dormir, mais dormir do que comer. As visitas de amigos que recebia mais o angustiavam do que o acalentavam. O baile já não era mais uma opção, não queria aparecer assim diante dos velhos amigos. Rita não sabia mais o que fazer para animá-lo.

 

Concluído o tratamento, Carlos é orientado a fazer o acompanhamento clínico (seguimento) por meio de consultas semestrais.

 

De volta à unidade de Saúde da Família, o médico o informa que o melhor acompanhamento de seu caso é no hospital do município vizinho que realizou o tratamento. Ele não suportava mais pensar em voltar ao hospital, mas entendia que ali talvez fosse o lugar mais adequado para o acompanhamento.

 

Carlos já não é mais o mesmo. Não sente mais as dores físicas da doença, mas é um homem marcado por um grande sofrimento, se sente inseguro e deprimido com sua condição de saúde, o que repercute na sua vida cotidiana. Todo o seu percurso pelo sistema de saúde do seu município e dos municípios vizinhos havia deixado nele uma marca de tristeza; ele presenciou problemas mais graves que o seu, e se sentiu inseguro em muitos momentos. Sua cirurgia havia sido um sucesso, diziam os médicos, mas ele se questionava: que sucesso é esse que me deixou usando essa bolsa? Se eu tivesse conseguido fazer logo os exames teria sido esse o meu destino?

 

Carlos pensava em suas opções. Conhecia pessoas que haviam cansado do sistema público e que compravam planos de saúde particulares, mas Carlos não achava isso justo, conhecia seus direitos e sabia que os planos não davam conta dos problemas mais complexos. O que Carlos queria mesmo era que o sistema público de saúde funcionasse, mas nesse momento, depois de toda a experiência vivida, só lhe restava rezar.